No encontro do dia 29 de abril, os professores supervisores do
PIBID nos solicitaram que escrevêssemos uma carta, um texto dedicado a algum
professor nosso, seja pelas boas ou más experiências que ele proporcionou. Eu hesitei um pouco em deixar impressões pessoais e tão singulares em um trabalho considerado
acadêmico. Além disso, eu, particularmente, tive muitas experiências positivas
com professores na escola, muito incentivo e carinho. Talvez tenha sido um
privilégio meu, mas, sem sombra de dúvida, um privilégio que contribuiu
diretamente para minha chegada ao que sou hoje. E essas memórias ainda ajudam
na caminhada. Me orientam sobre como agir academicamente, sobre como me defender
na academia, quando necessário (e, às vezes, é!), sobre como agir em sala de
aula. Assim, de um modo geral, tenho ciência de que sou (e não é por menos)
muito, muito, muito grata mesmo aos inúmeros profissionais que passaram pela
minha vida escolar.
Dito isso (e tudo na vida tem um “porém”),
eu me lembrei de uma situação particular que me ocorreu na primeira série do Ensino
Fundamental, aos 7 anos, envolvendo a professora da ocasião, e que acredito que seja relevante. Não foi uma
experiência nada boa. Então, por que relatá-la, sendo que eu tenho tantas
coisas positivas sobre outros professores ao longo da vida? Talvez pela catarse
da oportunidade de livrar-me do sentimento ruim, talvez. Ou talvez porque
alguém possa ler e pensar “será que não sou, em algum momento, injusto com meus
alunos?”, e assim, refazer sua caminhada.
Eis minha historinha, em forma de conto
(ou seria uma crônica? Ou um relato? A linha entre alguns gêneros é tão tênue, não é mesmo?), e eu a dedico à professora D. Sílvia,
cuja imagem ainda me apavora, apesar de ter certeza que ela não sabia o que
estava fazendo.
***
MAIS UM CONTO DE ESCOLA
Quando eu penso na época em que era
criança, na escola, eu realmente não entendo o que passava na minha mente. Êta
cabecinha confusa, meu Deus. Eu entendia perfeitamente as atividades escolares,
os trabalhos para casa, as somas, a caligrafia, e era boa aluna, sim. O que me
causava confusão era tudo fora disso: qual horário era o intervalo, se cada
época parecia ser numa hora diferente? Qual horário era de ir embora? Quando
era o dia da aula de religião, para colocar, na mochila, o livro? E o problema não era somente de ordem
cronológica, mas também não entendia certas dinâmicas sociais: Porque, raios,
as crianças corriam no intervalo? Qual o problema em ter somente um amigo?
Naquele dia, eu havia chegado atrasada,
como sempre. Minha mãe, como inúmeras mães, trabalhava muito, e nem sempre conseguia
com que eu chegasse antes do horário. Eu entrei na sala, e havia um silêncio
sepulcral. Imagine, uma sala de crianças de 7 anos, todos quietos. Entrei muda,
e sem fazer um único som e espremi até a minha carteira. Tinha uma folha mimiografada
(pessoas dos anos 80 vão entender!), escrito meu nome. E eu respirando interrogações,
sem ter ideia do que estava acontecendo. Olhei prum colega, gesticulei com a
boca sobre o que era pra fazer, e ele fez sinal com a cabeça, na direção da
folha, e disse: é pra responder.
Bom, responder questões? Isso eu sei
fazer. Mas estava tensa. Olhei pro papel e, juro, não fazia ideia da onde
vinham aquelas questões. Eu não sabia nem a que matérias eram relacionadas. O
que nós fazemos quando não sabemos algo, hoje em dia? Google né. Não tinha
Google. Então, eu fui direto à fonte do conhecimento, claro! O livro didático.
Português e matemática eu já havia entendido que não era sobre aquilo de que se
tratava a folha misteriosa. Abri o de “ciências sociais”, o famoso compêndio de
todos os assuntos que não eram de português e nem de matemática. Ninguém tinha
materiais em cima da mesa, então, eu, prá não ser a “diferentona”, abri
timidamente o livro sobre a pernas, e parti em busca das respostas.
Havia um colega do lado que se chamava
Luciano (e eu não poderia esquecer esse nome). Ele parecia uma bonequinha que
eu tinha, carequinha e de olhos bem grandes. O menino gritou, gente. Gritou:
- PROFESSORA A PAULA ESTÁ COLAAAAAAANDOOOOOOOOOOOOOOOO
NA PROVAAAAAAAA.
Sim, minha gente, podem rir. A folha, a tal folha era
uma folha de prova. Eu era nova na turma, e nunca tinha tido uma prova. Pelo
menos, não tão séria, tão silenciosa, tão sistemática. Além disso, não estava
escrito “prova”. Estava escrito “atividade”. E eu levava as coisas escritas muito
à sério (pelo menos até a chegada do finado Orkut e do atual Facebook, que
vieram para quebrar esse meu paradigma). Mas o fato é que era uma prova, e eu
estava olhando no livro. Em outras palavras, e do ponto de vista de quem viu a
cena: eu estava colando. Eu não sabia que era uma prova, eu cheguei atrasada e
perdi a explicação. E eu não lembrava que era dia de tal acontecimento (já
comentei sobre meu problema com a cronologia dos fatos na infância, né?), e eu
também não sabia que estava colando. Eu não sabia o que sequer era “colar”, a
não ser quando eu via, na TV, a Chiquinha pedindo cola para o Chaves, durante a
prova do professor Girafalles.
Ouvir meu nome em voz alta, me despertou
uma tremedeira, e tudo, tudo ao redor sumiu. Foi como ser jogada num quarto
escuro. Só tinha a voz da professora, que, sem titubear, logo em seguida à
acusação, e num tom muito comum das professoras da época, quando estavam bravas,
disse:
-A SENHORA Paula está colando???
Eu odeio sarcasmo até hoje. Eu não era uma
senhora, e eu não estava colando. "Colar" envolveria conhecimento prévio sobre a
situação, e eu juro, gente, eu não sabia. E eu não consegui responder nada. Eu suava
frio, e eu lembro de ver o suor escorrer nas mãos. E eu, normalmente, não transpiro pelas mãos. Talvez eu tenha gaguejado
algo. Só lembro bem que fazia imensa força pra não chorar, pois mais humilhante
que aquilo, seria chorar como um cachorro covarde e com medo, né? Eu lembro que ela
começou a gritar um enorme sermão, e tirou bruscamente meu livro. O blush bem vermelho (alô,
anos 90!) e os olhos pintadíssimos dela foram se fundindo num borrão só, junto
com a voz que, na minha lembrança se parece muito alta e rouca. Eu não consigo
lembrar do q eu ela disse, pois na ocasião eu não entendi, parecia bem outro idioma. Aliás, eu nem sei
como eu não desmaiei.
E eu passei o restante do tempo congelada,
sem conseguir me mexer, e dentro de mim só tinha a pintura do Munch, “O grito”,
sabem? E ele gritava assim: O QUE VOCÊ FEEEEEEEEEEEEZZZZZ?!?! Pois é. Parecia que todos que me olhavam também eram mini-Gritos, fazendo o mesmo questionamento. Obviamente eu não consegui mais nem se quer ler o que estava escrito na tal “prova”, e assim que
o primeiro entregou, e eu vi que poderia sair, entreguei a minha
como estava, em branco. Saí, sem fazer a menor ideia do que eu deveria ter escrito. Fugi, me esgueirando como um rato. Já lá fora, eu logo encontrei minha única amiguinha (Kéw, um
salve pra você!), e ela não tocou no assunto. Eu também não, apesar de que eu
queria muito me explicar para ela, explicar que eu não era uma pessoa que fazia
coisas erradas, que eu não era criminosa.
Eu queria ter explicado pra professora
também. Mas eu não pude. Às vezes, eu dou risada contando essa história, da tamanha inocência, a minha. Às
vezes, eu lembro da sensação de fora-da-lei, do enorme constrangimento, e tenho vontade de
chorar. Lembrar da situação ainda me entristece, pela injustiça da coisa, e
pela minha incapacidade de reagir. Pela estupidez e falta de tato da educadora.
Talvez eu seja sensível demais? Talvez.
Mas quem não é, aos 7 anos? E eu nunca imaginei que essa situação poderia ter
me rendido um trauma, até recentemente, quando fui fazer uma prova da minha antiga
faculdade. Era uma prova em dupla, mas muito difícil. O professor teve um problema e
precisou sair da sala, e, segundo ele, ia demorar uns 30 minutos. Logo que ele saiu, toda a sala
alcançou o celular em busca de respostas. Meu amigo, o da minha dupla, não
fez diferente, e sacou logo o celular, alegando que a saída do professor era obra divina.
Minhas mãos começaram a suar, e eu disse
pra ele que era melhor não, prá fazermos sozinhos, que o professor ia voltar a qualquer momento. Ele me
ignorou, totalmente, até porque eu não consegui ser enfática o suficiente. Eu, a portadora do dilúvio em forma de sudorese.
-Amiga larga de bobagem, olha pra sala! (Fazendo sinal com as mãos, apontando os
outros.)
Eu olhei, e a prova, nesse momento tinha
virado uma grande prova coletiva, com participação do Nosso Senhor dos Estudantes - o Google. Mas eu não vi por
muito tempo, porque eu fui lançada num quarto escuro novamente, com uns borrões
de blush e palavras roucas e gritadas. Sim, meus amigos, eu passei muito mal. Vinte
e cinco anos depois, e eu tive uma crise de pânico. Meu amigo, vendo a situação
sem entender nada, disse pra eu sair um pouco, que ele ia fazendo a prova. E eu,
sem pensar no que estava fazendo, saí. Fugi. Me esgueirando como um rato.
Professora, Dona Sílvia. Tia Sílvia. Se eu
pudesse te dizer algo, diria que é preciso contextualizar os alunos das
atividades, e aos 7 anos, é preciso contextualizá-los muito bem, muito
especificamente. Ninguém “cola” com sete anos. E, principalmente, é preciso
diálogo, e não gritos. Dar a eles a chance de se explicar, civilizadamente,
pois estamos em constante aprendizado quando se trata de regras. Cada novo
universo que adentramos, e suas regras, requer clareza pra entende-las. Crianças
precisam e devem ser tratadas como seres humanos, e privá-las do direito à
resposta, com gritos e imposições não é um tratamento humanitário. Acredito que
isso serve para todos os alunos e contribui para a formação do caráter de uma
pessoa.
Ah, e eu dei a bonequinha carequinha
embora, na semana seguinte, pois parecia que a qualquer momento ela ia gritar:
- A PAULA ESTÁ COLAAAAAAANDOOOOOOOOOOOOOOOO!!!
Paula Ramos Ghiraldelli, graduanda em Letras e pibidiana.
O grito, 1983. Edvard Munch.